Você já se percebeu tendo dificuldade em ser gentil consigo mesmo? Já sentiu que tratar-se com carinho parece estranho, desconfortável ou até errado? Talvez até consiga cuidar dos outros com atenção, mas quando se trata de voltar esse cuidado para si… alguma coisa trava.
Saiba que você não está sozinho(a) nisso.
Falar sobre compaixão é bonito e inspirador, mas colocar isso em prática — especialmente quando se trata de autocompaixão — pode ser um grande desafio emocional. E isso não acontece por fraqueza, falta de vontade ou “drama”. A ciência já reconhece que existem razões profundas, muitas vezes inconscientes, que dificultam a relação das pessoas com a compaixão.
Neste artigo, quero te contar um pouco sobre o que a Terapia Focada na Compaixão (CFT) e os estudos de pesquisadores como Paul Gilbert e Marcela Matos nos mostram sobre esse tema. Quem sabe você se reconheça em algumas dessas experiências — e encontre aqui um caminho mais acolhedor para começar a se cuidar.
O que é compaixão — e por que ela é tão importante?
Antes de tudo, vale lembrar: compaixão não é pena, dó ou condescendência.
Compaixão é a capacidade de se conectar com o sofrimento (próprio ou dos outros) e de se mover na direção do cuidado, buscando aliviar ou transformar essa dor.
Na Terapia Focada na Compaixão (CFT), criada pelo psicólogo britânico Paul Gilbert, a compaixão é considerada uma das forças mais importantes que temos para regular emoções, desenvolver resiliência e cuidar da nossa saúde mental.
Mas se a compaixão faz tão bem, por que ela pode ser tão difícil de praticar?
O nosso cérebro aprende a se proteger da dor — e às vezes do afeto também
A resposta para essa pergunta está na nossa história emocional e na forma como o cérebro humano evoluiu.
Segundo Paul Gilbert, todos nós temos sistemas emocionais que nos ajudam a sobreviver. Um deles é o sistema de ameaça, responsável por identificar perigos e nos preparar para fugir, lutar ou nos defender.
O problema é que, em muitas pessoas, esse sistema de ameaça fica hiperativo, especialmente quando elas cresceram em ambientes de negligência emocional, críticas constantes, rejeição ou até violência.
Nessas situações, o cérebro aprende que demonstrar vulnerabilidade ou buscar afeto pode ser perigoso. Afinal, quando essa pessoa precisou de cuidado, o que ela encontrou? Frieza? Indiferença? Punição?
Esse aprendizado fica registrado de forma profunda, e mesmo na vida adulta o simples gesto de ser gentil consigo mesmo pode acionar o modo ameaça. O corpo fica tenso. A mente resiste. Surge vergonha, culpa, medo.
Isso acontece porque o sistema emocional que deveria nos acalmar (o sistema de afiliação e cuidado) foi enfraquecido — ou associado à dor.
O medo da compaixão: por que muitas pessoas têm dificuldade em se cuidar?
Um dos achados mais importantes dos estudos sobre compaixão é que nem todo mundo consegue se sentir confortável com o cuidado — seja o cuidado recebido de outras pessoas ou o cuidado que oferecemos a nós mesmos.
A pesquisadora Marcela Matos estuda esse fenômeno e desenvolveu um instrumento chamado Escala de Medos da Compaixão (Fears of Compassion Scales), que investiga justamente isso: as barreiras internas que as pessoas têm para se aproximar do cuidado.
Esses medos podem se manifestar em três grandes áreas:
- Medo de sentir compaixão pelos outros
- Medo de receber compaixão dos outros
- Medo de sentir compaixão por si mesmo
No contexto da terapia e do autocuidado, o medo de sentir compaixão por si mesmo é um dos mais desafiadores — porque impede a pessoa de se acolher, se consolar e se proteger da própria dor.
Mas de onde vem esse medo?
O medo da compaixão nasce de experiências emocionais difíceis
Segundo os estudos de Paul Gilbert e Marcela Matos, ninguém nasce com medo da compaixão. O que acontece é que esse medo é aprendido, muitas vezes desde a infância, em contextos onde o cuidado foi ausente, ameaçador, crítico ou condicional.
Pessoas que cresceram em ambientes emocionais seguros — onde foram validadas, acolhidas e tratadas com carinho — costumam ter facilidade em desenvolver a autocompaixão.
Mas quando isso não aconteceu, o cérebro e o corpo dessas pessoas podem ter aprendido que cuidado é perigoso.
Exemplos de situações que favorecem o medo da compaixão:
- Infâncias marcadas por críticas severas, cobranças excessivas ou rejeição emocional.
- Famílias em que a vulnerabilidade era vista como fraqueza.
- Experiências de abandono ou negligência — emocionais ou físicas.
- Relacionamentos em que o afeto era usado de forma manipuladora ou condicional (“Se você fizer tudo certo, eu te trato bem”).
- Traumas emocionais, abuso ou bullying.
Essas vivências ensinam o cérebro a criar defesas contra o afeto — porque, no passado, quando a pessoa tentou se aproximar de cuidado, isso gerou mais sofrimento, vergonha ou rejeição.
Assim, a autocrítica, o isolamento e a rigidez emocional aparecem como formas de “proteção”.
Crenças comuns que alimentam o medo da compaixão:
Essas experiências acabam gerando um conjunto de crenças disfuncionais, que sustentam o medo de ser compassivo consigo mesmo. Alguns exemplos muito comuns na terapia são:
Crença | Origem possível | Impacto na vida adulta |
---|---|---|
“Se eu for gentil comigo, vou me acomodar.” | Aprendeu que só a crítica faz a pessoa melhorar. | Se mantém em cobrança e perfeccionismo constantes. |
“Eu não mereço cuidado.” | Cresceu ouvindo críticas, rejeição ou sendo invalidado. | Sente culpa ou vergonha ao descansar ou se priorizar. |
“Ser vulnerável é perigoso.” | Viveu rejeição ou punição ao expressar sentimentos. | Evita pedir ajuda, isola-se, não expressa emoções. |
“Só os outros merecem cuidado, eu não.” | Ambiente em que cuidar dos outros era obrigação e não podia cuidar de si. | Coloca as necessidades dos outros sempre acima das próprias. |
O medo da compaixão é uma defesa — não um defeito
Um ponto muito importante é que esses medos não são frescura nem sinal de falta de esforço. Eles são estratégias emocionais aprendidas para sobreviver em ambientes difíceis.
O problema é que, na vida adulta, essas estratégias deixam de proteger — e começam a gerar sofrimento.
Por isso, o trabalho terapêutico precisa ser feito com muito respeito à história de vida da pessoa, reconhecendo que esses medos foram importantes em algum momento, mas que agora podem ser reformulados.
Como diz Paul Gilbert:
“A compaixão não é fraqueza. É a coragem emocional de se engajar com o sofrimento — e de agir para aliviar essa dor.”
Paul Gilbert
Afinal… de onde a gente aprende a se cuidar?
Ninguém nasce sabendo como se cuidar emocionalmente. O jeito que aprendemos a nos tratar — com acolhimento ou com dureza — é profundamente influenciado pelas experiências que tivemos lá no começo da vida.
Quando somos crianças, dependemos totalmente do outro para sermos cuidados: pais, cuidadores, professores, pessoas que estavam à nossa volta.
É olhando o jeito que essas pessoas nos tratavam, e o jeito que elas lidavam com as próprias emoções, que fomos aprendendo (ou não) o que é cuidado.
Como isso pode influenciar de forma positiva?
Se você cresceu em um ambiente em que, quando sentia medo ou tristeza, alguém se aproximava com calma e dizia:
“Está tudo bem sentir isso. Eu estou aqui com você.”
ou
“Você não precisa ter vergonha de chorar. Vamos passar por isso juntos.”
Provavelmente, o seu cérebro foi registrando que sentir emoções é seguro. Que pedir ajuda é possível. Que ser vulnerável não é um problema.
Essas experiências positivas formam a base do que chamamos de modelo interno de cuidado — uma espécie de memória emocional que você leva para a vida.
Adultos que tiveram esse tipo de experiência tendem a ter mais facilidade em se acolher, se consolar e praticar autocompaixão.
E quando aprendemos o contrário?
Por outro lado, muitas pessoas cresceram ouvindo frases como:
- “Engole o choro!”
- “Para de frescura.”
- “Você tem que ser forte, ninguém vai te ajudar.”
- “Se eu te adular agora, você nunca vai aprender.”
Essas mensagens — mesmo que tenham vindo de um lugar de preocupação ou tentativa de educar — deixam marcas emocionais muito profundas.
É como se o cérebro aprendesse que sentir dor é errado. Que precisar de cuidado é sinal de fraqueza. Que pedir ajuda é perigoso ou vergonhoso.
E o mais triste: que o jeito de lidar com sofrimento é se calar, se isolar ou se criticar ainda mais.
Mas afinal… o que é cuidar de si mesmo?
Na Terapia Focada na Compaixão, cuidar de si mesmo não significa se isolar do mundo, se dar tudo o que quer o tempo todo ou “passar a mão na cabeça”. Também não é sobre criar uma rotina perfeita de autocuidado digna de redes sociais.
Cuidar de si mesmo é um movimento mais profundo.
Significa olhar para si com atenção, perceber as próprias dores e necessidades, e agir de um jeito que te ajude a aliviar o sofrimento e construir segurança emocional.
Cuidar é se tratar como você trataria alguém que ama muito — alguém que você quer ver crescer, se fortalecer, viver melhor.
Cuidar de si envolve atitudes muito concretas, como:
- Se permitir descansar quando está cansado(a), sem culpa.
- Buscar ajuda quando está difícil lidar sozinho(a).
- Falar consigo mesmo de um jeito mais respeitoso e encorajador, em vez de se criticar o tempo todo.
- Colocar limites em situações que te machucam ou te esgotam.
- Fazer escolhas que te protegem e te ajudam a construir uma vida com mais sentido.
Exemplos práticos de cuidado na vida real:
Situação | Cuidado compassivo | Não compassivo |
---|---|---|
Estou cansado | Me permito descansar e me respeito | Me obrigo a continuar e me critico por “fraqueza” |
Cometi um erro | Olho para o erro com gentileza e aprendo com ele | Me trato com culpa, vergonha e autocrítica |
Estou triste | Me acolho, busco apoio, reconheço a dor | Reprimo o sentimento e me julgo por sentir |
Preciso me proteger | Coloco limites com firmeza e respeito | Me exponho além do que posso aguentar |
Cuidar de si mesmo também se aprende
Se você percebe que não sabe muito bem como fazer isso, tudo bem. Ninguém nasce sabendo. Muitas pessoas não tiveram modelos de cuidado na infância ou aprenderam que cuidar de si era egoísmo ou fraqueza.
Mas a boa notícia é que isso pode ser reconstruído.
Na terapia, nos relacionamentos seguros, nas pequenas escolhas do dia a dia — você pode aprender um novo jeito de estar consigo mesmo.
Talvez cuidar de si comece com uma pergunta simples:
“O que eu preciso agora?”
“O que me faria bem, de verdade, nesse momento?”
Essas perguntas, repetidas com gentileza e atenção, vão criando um espaço interno mais acolhedor — onde você pode se tratar com respeito, carinho e coragem.
Porque você merece isso.
Simplesmente por ser humano.
Com carinho,
Paula.