O lado silencioso de recomeçar fora
Morar fora do Brasil pode ser uma das experiências mais transformadoras da vida.
Mas junto com o encantamento das novas ruas, idiomas e possibilidades, surge um sentimento que pouca gente fala, a solidão social.
Você se muda com sonhos e coragem. Pensa: “vou conhecer pessoas do mundo todo, fazer amigos incríveis, viver algo novo.”
E, de repente, percebe que as conversas são superficiais, os convites escassos e o tempo passa sem você se sentir verdadeiramente próxima de alguém.
Essa dificuldade não significa que algo está errado com você, significa que você está vivendo um processo humano e cultural profundo, estudado pela Psicologia Intercultural: a adaptação social entre mundos diferentes.
Neste artigo, vamos explorar com profundidade e empatia:
- Por que é tão difícil fazer amigos morando fora do Brasil;
- O que dizem os estudos da Psicologia Intercultural e Multicultural;
- As consequências da carência social e emocional na vida do imigrante;
- As habilidades sociais e emocionais que ajudam a construir vínculos reais;
- E como cultivar amizades saudáveis e autênticas entre culturas diferentes.
🌎 1. “Ser amigo” significa coisas diferentes ao redor do mundo
A Psicologia Intercultural (Triandis, 1995; Hofstede, 2001) mostra que amizade é um fenômeno cultural, não universal.
Cada sociedade tem modelos de proximidade, confiança e intimidade que aprendemos desde pequenos.
- No Brasil, crescer em uma cultura coletivista e relacional nos ensina a criar vínculos rápidos, compartilhar histórias pessoais com facilidade, misturar grupos (família, trabalho, amigos) e manter contato frequente.
- Já em países mais individualistas (como Alemanha, Reino Unido, Holanda, países nórdicos), a amizade é construída mais lentamente, baseada em interesses comuns e limites bem definidos entre “minha vida pessoal” e “minha vida social”.
Ou seja: o brasileiro chega com o coração aberto, e encontra um ambiente onde as pessoas se relacionam de modo mais reservado.
A diferença não é falta de empatia, é diferença de código cultural.
E esse desencontro gera confusão.
Muitas pessoas relatam pensar:
“Eles são simpáticos, mas não me chamam para sair.”
“Conversamos, mas não parece evoluir para amizade.”
“Será que fiz algo errado?”
A resposta, na maioria das vezes, é não.
Você só está tentando se conectar com pessoas que falam um idioma emocional diferente.
🇧🇷 1.1 As dificuldades que brasileiros enfrentam ao fazer amigos fora do país
Os brasileiros costumam carregar consigo uma característica que, no Brasil, é considerada uma virtude: ser caloroso, comunicativo e aberto. Nós aprendemos desde cedo a criar laços através de proximidade física, humor e espontaneidade emocional, três traços fortemente associados à nossa identidade cultural.
Mas, ao viver em países com dinâmicas sociais mais reservadas, isso pode gerar choques culturais sutis, que afetam diretamente a forma como as amizades se constroem.
🤝 1. A noção de “amizade instantânea”
No Brasil, é comum conhecer alguém hoje e já se sentir à vontade para trocar confidências ou fazer planos para o fim de semana. Em muitos países da Europa ou América do Norte, essa rapidez na aproximação pode ser percebida como “intimidade excessiva”.
O que para nós é natural, oferecer ajuda, chamar para jantar, contar algo pessoal, para outras culturas é um sinal de confiança que precisa ser conquistada com o tempo.
Essa diferença de ritmo pode fazer o brasileiro sentir que o outro é frio, quando na verdade ele apenas segue um modelo relacional mais gradual.
💬 2. Comunicação direta x indireta
O brasileiro tende a usar um estilo comunicativo emocional e relacional, cheio de nuances, humor e expressões não verbais (toque, tom de voz, olhar).
Em contrapartida, muitos povos europeus e anglófonos preferem uma comunicação mais objetiva, literal e com menor envolvimento emocional.
Por isso, o brasileiro pode se frustrar ao perceber que conversas parecem “frias” ou que o outro não demonstra tanto entusiasmo quanto esperava.
Esse desencontro não é falta de interesse, é apenas um estilo cultural diferente de expressar afeto.
🧊 3. Menos contato físico e emocional
Em grande parte dos países europeus e asiáticos, o toque físico e as demonstrações de afeto (abraços, beijos, proximidade corporal) são muito mais restritos do que no Brasil.
Esse distanciamento pode gerar um choque emocional silencioso: o corpo sente falta do calor humano a que estava acostumado.
Com o tempo, isso pode se traduzir em carência física e emocional, mesmo quando a pessoa está acompanhada.
🕰️ 4. A diferença no tempo de convivência
Enquanto no Brasil é comum encontrar amigos várias vezes por semana, em muitas culturas as pessoas têm rotinas mais estruturadas, e ver os amigos pode ser algo planejado com antecedência, uma vez por mês, por exemplo.
Isso pode fazer o brasileiro sentir que “ninguém quer ver ninguém”, quando, na realidade, o tempo livre é organizado de modo diferente.
🧭 5. Barreiras linguísticas e autoexpressão
Mesmo dominando outro idioma, o brasileiro pode sentir que não consegue mostrar quem realmente é.
As piadas não soam iguais, as expressões perdem força, o carisma parece “diminuir”.
Esse sentimento de “perder a própria essência” é relatado por muitos imigrantes e está ligado à identidade linguística, a sensação de autenticidade que vem ao se comunicar no idioma nativo.
Na psicologia intercultural, isso é chamado de “perda da identidade cultural” (cultural identity loss) uma sensação temporária de desconexão de si mesmo que impacta a forma de se relacionar.
🧠 6. O viés da comparação constante
Outro desafio comum é o viés de comparação: idealizar as relações do Brasil e se frustrar quando não encontra a mesma intensidade no exterior.
Frases como “no Brasil as pessoas são mais humanas” ou “ninguém aqui tem tempo pra amizade” refletem um choque de expectativas.
Essas comparações são naturais, mas podem alimentar ressentimento e dificultar a abertura para novos estilos de convivência.
A psicologia intercultural sugere que a melhor postura é não comparar, mas compreender: reconhecer que cada cultura expressa o afeto de modos distintos, e que amizade também é um aprendizado cultural.
🌿 7. O equilíbrio entre autenticidade e adaptação
O desafio final é encontrar o equilíbrio entre manter a própria essência brasileira e adaptar-se ao contexto local.
Nem se fechar no isolamento (“ninguém me entende”) nem se forçar a agir de forma que pareça artificial (“preciso ser mais fria”).
O caminho é a flexibilidade compassiva, ajustar comportamentos sem perder autenticidade emocional.
Em outras palavras: você não precisa deixar de ser quem é para pertencer, mas precisa ampliar seu repertório relacional para ser compreendida.
💬 2. O choque cultural e a dor da desconexão
De acordo com o psicólogo John Berry (1997), toda pessoa que migra passa por fases de aculturação, um processo de adaptação psicológica e social à nova cultura. Ele descreve quatro etapas:
- Euforia inicial — o encantamento com o novo: comidas, paisagens, idioma.
- Choque cultural — a frustração com o que é diferente: as regras sociais, a comunicação, o frio emocional.
- Ajustamento — quando começamos a entender o contexto local e reduzir os choques.
- Adaptação — o equilíbrio entre manter quem somos e pertencer ao novo ambiente.
É durante o choque cultural que a solidão costuma bater com mais força.
Fazer amigos parece difícil, as conversas não fluem e até pequenas rejeições pesam mais do que antes.
A mente começa a criar histórias: “as pessoas daqui são frias”, “eu não pertenço”, “ninguém se importa comigo”, quando, na verdade, estamos reagindo ao desconforto do desconhecido.
A boa notícia é que, com o tempo e o desenvolvimento de habilidades interculturais, esse mal-estar pode se transformar em crescimento emocional.
🧠 3. Identidade, pertencimento e o paradoxo de viver entre mundos
Viver fora é, antes de tudo, reconstruir a própria identidade cultural.
De repente, o que era automático, sua forma de cumprimentar, de brincar, de se expressar, precisa ser repensado.
A Psicologia Multicultural (Ward & Kennedy, 1999) explica que o bem-estar emocional do imigrante depende de duas forças em equilíbrio:
- Manter vínculos com sua cultura de origem (raízes, idioma, humor, valores);
- Integrar-se à cultura local, aprendendo suas normas sociais e ampliando a rede de apoio.
Esse equilíbrio é o que chamamos de integração bicultural, e é a forma mais saudável de se adaptar.
Quem tenta apagar sua origem (assimilação) tende a perder o senso de si.
Quem se fecha apenas entre compatriotas (separação) pode sentir-se preso a um “gueto cultural” e isolado do país onde vive.
Por isso, o ideal não é escolher entre “sou brasileira ou sou estrangeira”, mas aceitar:
“Sou uma pessoa que pertence a mais de um lugar — e que aprende a viver entre mundos.”
🧩 4. Comunicação intercultural: entender o que está nas entrelinhas
O antropólogo Edward Hall (1976) introduziu o conceito de culturas de alto e baixo contexto, e ele explica muito sobre por que as conversas às vezes parecem “travadas” no exterior.
- Culturas de alto contexto (como a brasileira, japonesa, árabe) valorizam comunicação implícita, emoções, gestos, entonações, histórias. O sentido está nas entrelinhas.
- Culturas de baixo contexto (como alemã, britânica, escandinava) preferem comunicação direta, objetiva e literal.
Essas diferenças criam ruídos sutis:
Um “vamos marcar um café qualquer dia” dito por uma brasileira soa como convite; para o europeu, pode soar como uma frase educada sem compromisso.
Um “não posso, estou ocupado” dito por um alemão soa frio, mas para ele é apenas honestidade.
Aprender esses códigos é parte do processo.
E o antídoto para a frustração é a empatia cultural , a capacidade de entender que as pessoas não se expressam como nós, mas não por isso são menos afetuosas.
💔 5. As consequências da carência social
A solidão crônica no contexto migratório é um dos temas mais estudados na psicologia intercultural. Pesquisas mostram que ela pode impactar diretamente a saúde mental e física.
Sintomas comuns:
- Sensação de desconexão, mesmo em meio a pessoas;
- Nostalgia intensa e idealização do país de origem;
- Dificuldade de concentração e de regulação emocional;
- Humor deprimido e irritabilidade;
- Redução da autoestima e da autoconfiança social.
Segundo estudos (Geeraert et al., 2019; Ward et al., 2021), a falta de vínculos sociais é um dos principais preditores de depressão, ansiedade e estresse crônico em imigrantes e expatriados.
E mais: a carência social também gera autoatribuições negativas, “ninguém gosta de mim”, “não sei fazer amigos”, “sou estranho”, que reforçam o isolamento e alimentam um ciclo de retraimento.
Por isso, o trabalho psicológico nessa fase é essencial: validar a dor da solidão sem transformá-la em identidade.
🧘♀️ 6. Como a Terapia Focada na Compaixão ajuda
A Terapia Focada na Compaixão (CFT), oferece um olhar muito útil aqui.
Ela ensina que o sofrimento da solidão ativa nosso sistema de ameaça, o mesmo que é acionado quando sentimos rejeição.
Nosso cérebro lê o isolamento como risco à sobrevivência.
Por isso, é tão importante ativar o sistema de cuidado, aquele que promove segurança, conexão e gentileza.
Isso inclui:
- Autocompaixão: validar que se sentir só não é fraqueza, mas parte da experiência humana.
- Coragem social: tentar de novo, mesmo após experiências frustrantes.
- Regulação emocional: usar respiração, grounding e exercícios de presença antes de eventos sociais desafiadores.
A autocompaixão é o alicerce para criar novas pontes sem se destruir emocionalmente no processo.
🌱 7. As habilidades sociais que mais ajudam a fazer amigos fora
A psicologia intercultural descreve algumas competências de adaptação social que se correlacionam fortemente com a capacidade de criar amizades duradouras:
| Habilidade | O que significa | Como praticar | 
|---|---|---|
| Tolerância à ambiguidade | Suportar o desconforto do diferente sem se fechar. | Observar sem julgar; lembrar que “diferente” não é “errado”. | 
| Empatia cultural | Entender o outro dentro do seu contexto cultural. | Perguntar e se interessar genuinamente por costumes locais. | 
| Autoconsciência cultural | Perceber seus próprios hábitos brasileiros. | Refletir: “o que é cultural em mim e o que é pessoal?” | 
| Flexibilidade comportamental | Ajustar sua forma de se expressar conforme o ambiente. | Adaptar-se sem perder autenticidade. | 
| Motivação para integração | Desejo de aprender e pertencer. | Participar de atividades locais, mesmo que haja insegurança. | 
Essas habilidades não se desenvolvem da noite para o dia.
Elas crescem com o tempo, com erros, aprendizados e, acima de tudo, gentileza consigo mesma.
🤝 8. Expectativa x Realidade: desfazendo os mitos da amizade no exterior
| Expectativa | Realidade | 
|---|---|
| “As pessoas vão ser receptivas como no Brasil.” | Cada cultura tem seu ritmo de abertura. Algumas demoram meses para incluir um novo amigo. | 
| “Vou ter um grupo de amigos logo.” | A amizade adulta leva tempo. Às vezes, o vínculo vem de microconexões cotidianas. | 
| “Ser estrangeira desperta curiosidade positiva.” | Sim, mas também pode gerar distância ou estereótipos. É preciso paciência. | 
| “Falar o idioma já basta.” | Idioma é necessário, mas não suficiente. O que importa é a linguagem emocional. | 
Aceitar essas diferenças ajuda a aliviar o peso da comparação.
A vida social fora do Brasil raramente é espontânea como em casa, mas isso não significa que seja impossível, apenas que é diferente.
💡 9. Estratégias práticas para criar e manter vínculos
- Participe de grupos temáticos (idioma, dança, arte, yoga, esportes). Hobbies são uma forma natural de conexão.
- Use apps e eventos locais como Meetup, Internations ou grupos de Facebook da cidade.
- Voluntarie-se em causas locais. Isso une propósito e convivência.
- Crie rituais de microconexão: cumprimente o barista, converse com vizinhos, sorria no mercado.
- Combine contato online e offline: mantenha amizades brasileiras, mas invista em vínculos locais.
- Não espere reciprocidade imediata: algumas culturas testam a constância antes da abertura emocional.
- Aprenda o idioma emocional local: observe como as pessoas demonstram carinho e amizade, pode ser por ações, não palavras.
💞 10. A vulnerabilidade como linguagem universal
Estudos de Aron et al. (1997) e Sprecher & Treger (2015) mostram que a vulnerabilidade compartilhada é o que transforma conhecidos em amigos.
Ou seja: amizade nasce quando alguém se mostra humano.
Contar que sente falta da família, que está se adaptando, que cometeu gafes culturais, longe de afastar, aproxima.
Porque o outro percebe autenticidade, não performance.
A vulnerabilidade é a língua que todas as culturas entendem.
🌤️ 11. O ciclo natural da adaptação social
A pesquisadora Young Yun Kim (2001) propõe o modelo de estresse–adaptação–crescimento.
Segundo ela, cada desconforto vivido fora do país é um convite à expansão psicológica:
- O estresse (solidão, rejeição, choque cultural) gera dor;
- A adaptação vem quando aprendemos novas respostas sociais;
- O crescimento aparece quando nos sentimos confortáveis em mais de um contexto cultural.
Em outras palavras: o desconforto é o treino que fortalece sua capacidade de pertencer.
💚 12. Cuide de você durante o processo
Fazer amigos fora é importante, mas não é a única fonte de pertencimento.
Enquanto as conexões crescem, cultive também o vínculo consigo mesma:
- Tenha um plano de autocuidado: sono, alimentação, movimento.
- Mantenha rotinas de prazer: caminhar, pintar, ouvir música.
- Busque terapia com profissionais que compreendam o contexto intercultural.
- Celebre pequenas conquistas: um “oi” que virou conversa, uma risada trocada, um convite aceito.
- E lembre-se: não é um fracasso precisar de tempo.
Pertencer leva tempo.
Mas o tempo, quando há gentileza e constância, faz florescer raízes invisíveis.
🌻 Conclusão: pertencer é um verbo
Fazer amigos morando fora não é sobre colecionar contatos, é sobre cultivar laços significativos num terreno novo.
A Psicologia Intercultural nos ensina que o pertencimento não acontece de uma vez: ele se constrói, encontro após encontro, palavra após palavra, gesto após gesto.
A amizade, no contexto migratório, é um ato de coragem emocional.
É olhar para o outro e dizer: “mesmo vindo de mundos diferentes, quero estar aqui com você.”
E talvez o mais bonito seja perceber que, ao longo desse caminho, você também faz amizade consigo mesma, com a versão de você que está aprendendo a viver entre culturas, com mais compaixão, presença e autenticidade.
Com carinho,
Paula.
 
								             
	
	
	
 
				 
			 
			